Resenha: A Revolução dos Bichos, de George Orwell

Terminei minha leitura da A Revolução dos Bichos com uma certa frustração. Acontece que a edição que li (Companhia das Letras) continha ao final um posfácio de Christopher Hitchens e mais um apêndice contendo dois prefácios do próprio George Orwell. Juntos, esses textos suplementares compunham quase um terço do volume total do livro.

De modo que depois de ler o último parágrafo avidamente, virei a página certo de que continuaria a história (com base no volume restante de páginas) e me deparei abruptamente com o posfácio. Depois de me recuperar do susto, reli os últimos parágrafos do romance novamente e então encerrei oficial e solenemente a leitura da obra. Um puta livro.

O livro fala sobre como os sonhos da revolução russa descambaram pro horror do stalinismo na antiga URSS, mas usando bichos ao invés de pessoas e uma granja na Inglaterra ao invés do território russo. E isso não é uma interpretação subjetiva minha. A Revolução dos Bichos não é uma fábula simbolista. Mesmo que muita coisa esteja aberta a interpretação, a crítica ao stalinismo é declarada e escancarada.

O mote da história é que numa certa noite em uma certa granja da Inglaterra, Major, um porco velho e sábio, muito respeitado entre os outros bichos, e que já pressentia a chegada da própria morte, reuniu os animais da granja para transmitir seus ensinamentos e fazer uma profecia.

Ele afirmava que ali os bichos viviam uma vida curta e cheia de privações, explorados por humanos cruéis. Os humanos, segundo Major, eram inimigos dos bichos, e no dia que fossem eliminados, os bichos seriam livres de verdade e viveriam usufruindo do fruto integral de seu trabalho.

Arrematou a reunião ensinando aos bichos uma antiga canção chamada “Bichos da Inglaterra”, que falava sobre os tempos vindouros em que os animais não mais seriam explorados pelo homem e viveriam livres pelas pastagens. Canção que acabaria virando o hino oficial da revolução dos bichos.

Como eu disse, o livro buscava abertamente denunciar no que tinha se transformado o regime soviético com Stalin no poder, e é fácil traçar os paralelos: Major, aquele que semeia o germe da revolução, é inspirado em Marx (poderíamos dizer também que ele representa toda a velha guarda do socialismo). Se a gente ler o discurso do velho suíno substituindo humano e homem por capitalista e bicho e animal por trabalhador temos a intuição fundamental da crítica socialista. Tente você mesmo:

Por que, então, permanecemos nesta miséria? Porque quase todo o produto do nosso esforço nos é roubado pelos seres humanos (…) O Homem é o nosso verdadeiro e único inimigo. Retire-se da cena o Homem e a causa principal da fome e da sobrecarga de trabalho desaparecerá para sempre (…). O Homem é a única criatura que consome sem produzir (…). Mesmo assim é o senhor de todos os animais. Põe-nos a mourejar, dá-nos de volta o mínimo para evitar a inanição e fica com o restante.

Mais tarde, não suportando mais a exploração do Homem, os animais acabam se rebelando e tomam conta da granja. Os porcos, que eram os animais com o intelecto mais desenvolvido, acabam tomando a frente da rebelião, que começou de modo espontâneo. E é aí que começa a sacanagem.

Dois porcos que simplesmente não concordam em nada assumem o papel de liderança: Bola de Neve e Napoleão. Uma das principais divergências de opinião dos dois é que enquanto Bola de Neve acredita que os animais da granja devem espalhar a palavra da Revolução e auxiliar os animais das outras granjas a realizar sua própria revolução “animalista”, Napoleão acha que os animais devem concentrar suas forças em garantir a segurança da própria granja e, assim, a continuidade de seu próprio regime revolucionário.

Qualquer um por dentro das tretas comunistas saca de cara que Bola de Neve representa Trótski e Napoleão representa Stalin (e pra quem não sacou, Christopher Hitchens fala sobre isso no posfacio). E como aconteceu na vida real com o Trótski, Bola de Neve se deu mal e Napoleão acabou se tornando o líder absoluto da granja revolucionária.

O livro narra como, paulatinamente, os animais da granja saíram de uma vida de opressão pelas mãos do homem pra acabar vivendo uma vida ainda mais sofrida nas mãos dos porcos. Orwell teve muita sensibilidade pra sacar e conseguir descrever de um jeito tão simples as diversas estratégias pra tornar esse desfecho possível.

Uma estratégia recorrente foi a de se aproveitar da ignorância dos outros animais (os porcos eram animais sofisticados que tinham facilidade pra aprender a ler, escrever e imaginar coisas, enquanto a maioria dos outros bichos não conseguia ler, não tinha boa memória e nem conseguia acompanhar os argumentos dos porcos).

Os animais sempre se perdiam nos debates entre os porcos e achavam que o orador que estava falando no momento sempre estava certo. Então sempre votavam em quem provocava a impressão mais forte.

Mas depois que Bola de Neve foi expulso da granja, não houve mais debates entre os porcos e a manipulação passou a ocorrer de modo muito mais incisivo. Os porcos começaram a alterar os mandamentos da nova “sociedade animalista” de acordo com o que lhes convinha se fiando na memória curta e no analfabetismo reinante entre os animais.

Quando os bichos ficavam descontentes com algo, eram persuadidos de que o que estava sendo feito era para o bem de todos (mesmo que a primeira vista parecesse beneficiar apenas os porcos). E aqueles mais resistentes aos argumentos, eram dissuadidos de protestar através da intimidação pura e simples.

Outra estratégia foi a de escolher um inimigo da sociedade dos bichos (no caso, o foragido Bola de Neve), e usá-lo para explicar tudo que dava errado. Se a comida desaparecia, se o moinho de vento caía, ou se qualquer outra tragédia acontecesse, era culpa do Bola de Neve. Assim, o regime era plenamente justificado, pois protegia os animais da maldade do Bola de Neve, ao mesmo tempo que escamoteava sua própria incompetência e descaso, pois se algo dava errado, a culpa não era do regime, mas do Bola de Neve.

A medida que o tempo passava, a manipulação dos porcos foi ficando cada vez mais escrachada. A própria história da revolução ia sendo reescrita de modo a exaltar Napoleão e acabar com a imagem do Bola de Neve (que chegou a levar um tiro em combate e recebeu uma medalha). Diariamente, eram “achados” documentos que provavam que Bola de Neve era um conspirador que agiu contra a revolução e que agora articulava para sabotá-la.

O narrador nos apresenta a situação do lado de fora casa grande, onde foram morar os porcos, nunca observamos o que acontece dentro da casa. Do ponto de vista dos outros animais, vamos vendo a situação ficar cada vez mais desoladora. Enquanto os porcos vão ganhando regalias, dormindo em camas, bebendo cerveja e ficando mais e mais gordos, os outros bichos trabalham cada vez mais e recebem cada vez menos ração. E a coisa vai indo assim até o desfecho final.

Terminei de ler o livro com uma tristeza semelhante a que senti depois de ler um livro sobre a experiência anarquista na guerra civil espanhola. Era bonito e animador ler sobre como os trabalhadores organizados tomaram conta das fábricas e das fazendas e estavam conseguindo dar conta da produção e da revolução ao mesmo tempo.

Mas, no fundo, eu queria que essas histórias, que começaram tão bem, terminassem narrando como os revolucionários foram bem sucedidos, como os trabalhadores autogestionados foram capazes de superar as dificuldades e estabelecer uma cadeia produtiva eficiente e sem exploração.

Mas não tem jeito, a história não pode terminar assim porque a História já foi escrita, seja na granja dos bichos, seja na União Soviética, seja na guerra civil espanhola, os revolucionários são trucidados ou fogem, troca-se um regime por outro pior, e os trabalhadores continuam do mesmo jeito (ou pior). Parece que o final feliz nunca acontece. A utopia libertária continua sendo uma utopia.

Orwell foi um homem de muita sensibilidade e visão aguda. Conseguiu fazer uma síntese didática do drama soviético, que mostra como uma revolução socialista pode dar errado. O que o torna uma leitura obrigatória pra todos os simpatizantes do verdadeiro socialismo.

Simpatizantes sim, porque, conforme o próprio autor indica nos prefácios da obra (incluídas como anexo na edição da Companhia das Letras), a obra não busca mostrar como o socialismo é ruim, ou como capitalismo e socialismo são faces de uma mesma moeda. O que Orwell queria era alertar o resto do mundo, mostrar que o que estava acontecendo na União Soviética não era socialismo. Que o mito da URSS precisava ser criticado e superado, para que a própria ideia de socialismo pudesse ser salva.

Cabe a nós, agora, a tarefa de descobrir como fazer dar certo.