Resenha: Fahrenheit 451, de Ray Bradbury

Engatei a leitura de Fahrenheit 451, de Ray Bradbury no mesmo dia que terminei A Revolução dos Bichos, de Orwell. De cara, já senti um incômodo com a linguagem. Acontece que o livro do Orwell é de leitura fácil e fluida, e o contraste com a linguagem figurada e o detalhismo do estilo de Ray Bradbury foi gigante.

Não obstante, perseverei na leitura e algo mágico aconteceu. Eu pego três ônibus pra me deslocar de casa até a faculdade. Resolvi levar o livro pra ler no caminho. Entrei no primeiro ônibus, fui lendo o livro bastante compenetrado, e de repente, o ônibus parou e não andou mais. Olhei pela janela: eu estava no terminal.

Esperei o outro ônibus, depois que ele chegou, eu me sentei, peguei o livro de novo, comecei a ler e, de repente, o ônibus parou e não prosseguiu viagem: eu tinha chegado no segundo terminal. A mesma coisa se repetiu no último ônibus que finalmente me deixou na faculdade.

Quase duas horas se passaram sem eu nem perceber. Pois é, apesar desse atrito com a linguagem, o livro tem uma capacidade incrível de prender o leitor. Depois, lendo o posfacio, descobri que Bradbury escreveu o livro em máquinas de datilografar de aluguel, na biblioteca de uma universidade. Ele tinha que depositar uma moeda e escrever insanamente durante trinta minutos (pro dinheiro valer a pena!). Acho que esse ritmo frenético acabou passando pra o próprio andamento do livro. Depois dos instantes iniciais da trama, ela começa a ficar tensa e depois é só tiro, porrada e bomba.

O livro se passa num futuro distópico e narra a história de Guy Montag, um bombeiro. Acontece que nesse futuro, os bombeiros deixaram de apagar incêndios para provocar incêndios: os livros foram proibidos e os bombeiros são agora os responsáveis por incinerá-los.

A narrativa é muito envolvente, e Bradbury consegue criar imagens poderosas e composições de cenas quase cinematográficas (a cena em que o capitão Beatty visita Montag e explica a ele a história dos bombeiros, por exemplo).

Nessa nova realidade, as pessoas passam boa parte do tempo livre com os olhos vidrados em grandes tevês, assistindo jornais sensacionalistas e novelas, interagindo com personagens fictícios em grandes telas de TV, ouvindo programas fúteis em fones de ouvido até mesmo enquanto dormem. Os jovens dirigem carros em alta velocidade. Pessoas são atropeladas, morrem na guerra, têm overdose de comprimidos e ninguém se importa. Todos se sentem felizes (ou pelo menos tentam se convencer disso).

E elas se sentem felizes porque são tão bombardeadas por estímulos sensoriais que mal têm tempo de pensar. As pessoas não param mais pra simplesmente conversar ou pensar na vida. Pessoas que passeiam intransitivamente pelas ruas são mal vistas e correm o risco de serem atropeladas só por diversão.

A edição que li (Biblioteca Azul), contém uma introdução de Neil Gailman, escrito em 2013. O cuidado com que ele explica o contexto político e cultural em que Fahrenheit 451 foi escrito (EUA dos anos 50) e dá razões e justificativas para elaboração do livro do jeito que ele foi concebido, passam uma certa impressão de que a obra é de algum modo datada e que precisamos lê-la com uma alguma dose de condescendência para com o autor.

Não sei. Eu tive essa impressão. O engraçado é que pra mim, se a preocupação de Bradbury era com as pessoas vidradas em telas, deixando as interações reais de lado pra se entregar a relações fictícias ou virtuais, se esforçando pra manter uma aparência de pessoa feliz e satisfeita pra disfarçar a própria miséria emocional, acreditando em tudo que lhes fosse mostrado na televisão, então tudo isso ainda continua valendo.

Mas hoje, o sinal do fim dos tempos não seria mais o besteirol da televisão (apenas), mas o scroll infinito, os desafios do tiktok, o metaverso, a inteligência artificial, as fakenews. Se essa distopia era factível pelos sinais presentes na década de 50, ela não seria menos possível com os sinais de agora. Apenas utilizaria novas tecnologias.

Na história, acompanhamos o progressivo despertar de Montag desse estado de torpor espiritual, estimulado por seu encontro inicial e subsequentes passeios ao lado de uma jovem excêntrica chamada Clarisse McClellan. Sob influência dessa jovem alegre e desajustada, Montag começa a desenvolver um olhar mais crítico a respeito da sociedade da qual faz parte.

Isso acontece porque Clarisse faz muitas perguntas, e não só observa tudo como tem uma opinião própria sobre as coisas, pois, diferente dos outros, ao invés de se engajar em atividades que calem seus pensamentos e a distraia da realidade, ela aprecia a contemplação e o diálogo. E apenas quando nos damos o luxo de parar pra pensar é que ficamos confusos, é quando surgem as dúvidas. É quando começamos a tentar tirar conclusões pra responder nossas próprias indagações e surge a necessidade de trocar ideias com outras pessoas. Criamos opiniões. E então nos perguntamos “Por que ninguém fala sobre isso?”. Mas os livros falam.

O papel que Clarisse tem na vida de Montag é mais ou menos o papel que qualquer bom livro tem na vida da gente. Os hábitos estranhos da menina e a enxurrada de perguntas que fazia, deixaram Montag perturbado. Mas como o próprio Montag veio a compreender, “Não precisamos que nos deixem em paz. Precisamos realmente ser incomodados de vez em quando. Quanto tempo faz que você não é realmente incomodada? Por alguma coisa importante, por alguma coisa real?”. O incômodo nos desperta e nos faz questionar, aliás, muitas vezes o questionamento é o próprio incômodo. E é por isso que os livros precisam ser queimados.

Porque questionar, duvidar, sentir, deixam a alma indócil. Montag que o diga. O bombeiro começou a se desviar da moral e dos bons costumes com pequenos atos subversivos (surrupiando livros discretamente, por curiosidade), e, num dado momento, já se comportava como aqueles personagens de Dostoievski que, tomados por ímpetos febris e irracionais, descambam a fazer alguma presepada de dar vergonha alheia no leitor (quando Montag decide declamar um poema para as amigas da esposa, por exemplo).

Claro que apenas queimar livros não seria o suficiente pra alienar toda uma sociedade. A incineração de livros era apenas o ritual mais simbólico de todo um conjunto de políticas mais ou menos conscientes de estupidificação das massas, que envolvia outros processos mais sutis. Durante a narrativa, o capitão dos bombeiros Beatty cita alguns exemplos.

Dentre eles, a simplificação do material jornalístico, que foi sendo enxugado para torná-lo mais palatável até que uma reportagem tradicional acabasse virando apenas um resumo do resumo do resumo de uma reportagem para, finalmente, se tornar apenas uma manchete sem substância. Outro exemplo é a precarização do ensino, que deveria dar ao jovem o suficiente apenas para que ele se tornasse um membro produtivo para a sociedade.

E, principalmente, o esforço em fornecer à população opções de lazer e de prazer estonteantes que prendam a atenção (dirigir em alta velocidade, assistir a filmes que estimulem os sentidos, participar de maneira interativa de programas de TV) ou que simplesmente as entorpeçam (calmantes para dormir).

Fahrenheit 451 não é exatamente um livro sobre o futuro. É um livro sobre o presente e a merda que poderia dar se certos hábitos, mecanismos e processos presentes na sociedade atual fossem levados ao paroxismo. Pode parecer improvável, mas imagine, por exemplo, se a educação no Brasil fosse sendo cada vez mais sucateada? Imagine se as bolsas de pesquisa fossem suspensas ou congeladas e os estudantes universitários começassem a ser estigmatizados por pensar a sociedade? Imagine se as pessoas começassem a enxergar canais de streaming como fonte primária de informação a serem consumidas de forma acrítica até chegarem no nível de defender a ideia de que, sei lá, a terra é plana? E se as pessoas começassem a preferir se relacionar com programas de computador a interagir com outras pessoas? E se ao invés de questionar o modo cruel de funcionamento da sociedade, as pessoas aceitassem passivamente a exploração e a injustiça, tomando remédios voluntariamente pra se esquecer que sua vida anda uma merda? E se as pessoas passassem a defender abertamente o autoritarismo?

Eu sei. É muito difícil imaginar essas coisas descabidas acontecendo. As coisas jamais chegariam a esse ponto… Chegariam?